O Ministério Público Federal se manifestou no processo que trata da
consulta prévia, livre e informada da usina São Luiz do Tapajós,
que o governo brasileiro quer construir na região de Itaituba,
sudoeste do Pará, pedindo que o direito da consulta seja respeitado
para todos os povos afetados. O governo brasileiro está tentando
restringir o direito da consulta, sustentando nos autos que a
consulta só precisa ser feita com algumas aldeias do povo Munduruku,
excluindo índios da mesma etnia e ribeirinhos que serão impactados
no alto curso do rio Tapajós.
O direito da consulta prévia está previsto na Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é
signatário, e nunca foi cumprido pelo governo federal nas usinas
hidrelétricas que constrói na Amazônia. No caso da usina São Luiz
do Tapajós, ao pedir uma suspensão de segurança no Superior
Tribunal de Justiça para prosseguir com os estudos da obra, o
governo foi surpreendido porque a decisão do ministro Félix Fischer
liberou os estudos, mas obrigou a realização da consulta.
“O
que não se mostra possível, no meu entender, é dar início à
execução do empreendimento sem que as comunidades envolvidas se
manifestem e componham o processo participativo com suas
considerações a respeito de empreendimento que poderá afetá-las
diretamente. Em outras palavras, não poderá o Poder Público
finalizar o processo de licenciamento ambiental sem cumprir os
requisitos previstos na Convenção nº 169 da OIT, em especial a
realização de consultas prévias às comunidades indígenas e
tribais eventualmente afetadas pelo empreendimento”, diz a decisão
do então presidente do STJ.
Mesmo assim, no mês passado, o governo brasileiro chegou a agendar o
leilão da usina para o próximo dia 15 de dezembro. Depois, diante
da pressão dos próprios atingidos, voltou atrás e desmarcou o
leilão. Mas, no processo judicial, a União e o Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente continuam insistindo em restringir e negar o direito
de consulta a boa parte dos atingidos, alegando que a Convenção 169
não foi regulamentada e que populações ribeirinhas não podem ser
consideradas tribais.
Em
reunião com os atingidos recentemente, Nilton Tubino, da
Secretaria-Geral da Presidência da República, avisou que as
populações tradicionais do rio Tapajós não serão consultadas. “O
que a gente tá discutindo é fazer um processo de informação lá
com Mangabal, mas que não seria consulta. No entendimento do governo
federal hoje, nessa fase aí, quem é ouvido na 169 são indígenas e
quilombolas. Isso já tem referências. Comunidades tradicionais
ainda não se chegou a esse acordo dentro do governo, como vão ser
consultadas e em que estágio vão ser consultadas”
“Beiradeiros,
ribeirinhos e agroextrativistas são tão sujeitos de direitos da
Convenção 169 quanto os indígenas e devem ter direito a uma
consulta apropriada. Afirmar o contrário é mais uma vez incidir num
discurso hegemônico, em que os diferentes modos de viver e se
relacionar com a floresta são desconsiderados”, diz a manifestação
enviada à Justiça Federal de Santarém, assinada pelo procurador da
República Camões Boaventura.
“É
com muita perplexidade que o MPF avalia a defesa do Ibama. Esquece a
autarquia que a Convenção 169 já foi reconhecida pelo STF como uma
norma de status supralegal e goza de eficácia plena e imediata no
ordenamento jurídico brasileiro, independendo, portanto, de
regulamentação”, diz a manifestação do MPF em resposta ao
governo brasileiro. Para o MPF, a melhor solução para se
identificar a forma apropriada de se realizar a consulta é fazer com
que cada povo ou comunidade tradicional explicite, por meio oral ou
escrito, a depender de sua forma de organização, como deseja ser
consultado.
Os ribeirinhos conhecidos como beiradeiros, da comunidade
Montanha-Mangabal, no alto Tapajós, diretamente afetados pela usina
e a quem o governo brasileiro se recusa a consultar, elaboraram, com
apoio do MPF, o seu próprio protocolo de consulta. Eles deixam claro
seu intento de serem consultados nos termos da Convenção 169.
“Nós
queremos ser consultados todos juntos, porque todo mundo aqui sabe de
alguma coisa e luta por um só ideal. O governo não pode consultar
famílias separadamente. Nunca nos sentimos à vontade com as
conversas em separado feitas por representantes do governo ou de
empresas. Sabemos que nossos direitos não são favores. Por isso,
não adianta o governo nos prometer nada em troca de aceitarmos sua
proposta. O governo também não pode nos consultar quando já tiver
tomado uma decisão: temos direito à consulta prévia”, dizem os
beiradeiros no protocolo.
O direito dos beiradeiros, apesar das tentativas do governo de
ignorá-los está assegurado não só na Convenção e expresso no
protocolo, como foi afirmado pela ordem do ministro Félix Fischer,
do STJ. “Entendo que, para se dar fiel cumprimento aos dispositivos
da Convenção, o governo federal deverá promover a participação
de todas as comunidades, sejam elas indígenas ou tribais, a teor do
seu art. 1º, que podem ser afetadas com a implantação do
empreendimento, não podendo ser concedida a licença ambiental antes
da sua oitiva”, diz a decisão, de 18 de abril de 2013.
Os beiradeiros indicam que devem ser consultados, além de
Montanha-Mangabal, as comunidades de Mamãe-Anã, Penedo, Curuçá,
Pimental, São Luiz e Vila Rayol, e as aldeias como a do Chico Índio e a de Terra Preta (da etnia Apiaká). Para o MPF, o
governo ignora a noção correta de bacia hidrográfica, ao limitar
apenas a um trecho do rio e a alguns moradores o direito de consulta.
O
MPF quer que a Justiça expressamente determine, novamente, que
“deverão
ser consultadas de forma livre, prévia e informada todas as
comunidades tradicionais (sejam elas indígenas ou tribais) situadas
na bacia hidrográfica em que se pretende a construção da UHE São
Luiz do Tapajós, nos termos da Convenção 169/OIT, em especial
aquelas situadas nos denominados cursos alto, médio e baixo do rio
Tapajós.”
Boa-fé
e má-fé
Não são apenas os ribeirinhos e beiradeiros que o governo tenta
excluir do direito de consulta. Os próprios Munduruku vêm acusando
o governo de tentar dividi-los, programando reuniões que excluem os
caciques das aldeias e garantem a participação apenas de vereadores
e indígenas do médio Tapajós. Em carta enviada ontem ao governo e
também ao MPF, índios Munduruku reclamam que a reunião sobre a
consulta prevista para essa semana (4 e 5 de novembro) teve o local
modificado pelo governo em cima da hora.
“Além
disso, o governo se negou a dar a quantidade de gasolina que pedimos
para garantir a ida de nossos parentes que moram mais longe de
Jacareacanga. Acreditamos que é responsabilidade do governo garantir
o transporte dos Munduruku do alto e médio Tapajós tanto por água
e por terra até o local da reunião, mas o mesmo se nega a garantir
recursos dizendo que o custo é muito alto.”
“O
governo brasileiro age como a sucuri gigante, que vai apertando
devagar, querendo que a gente não tenha mais força e morra sem ar.
Vai prometendo, vai mentindo, vai enganando”, diz a carta. No
processo judicial da consulta, os advogados da União tentam usar as
dificuldades do processo de consulta, muitas vezes causadas pelo
próprio governo, como justificativa para não realizar nenhuma
consulta, sob a alegação de que os Munduruku se recusam ao diálogo.
Para o MPF, é uma tentativa clara de “falsear a verdade” depois
de tantas e seguidas violações do direito de consulta por parte do
governo contra os Munduruku e índios de toda a bacia amazônica.
O MPF lembra que a consulta realizada pelo governo só ocorre em
consequência de decisão judicial e que incomoda justamente aos
Munduruku por não ser prévia, como exige a Convenção 169, uma vez
que a decisão governamental de construir a usina já está
consolidada.
“Não há limites
para o perfil violador de direitos indígenas básicos daqueles que
figuram no pólo passivo desta Ação e de outros interessados na
construção da usina. Vigora para as rés (União, Aneel e Ibama) a
máxima de que os 'fins justificam os meios'! Os fins, na hipótese,
são a implantação do Complexo Hidrelétrico ora em comento e o
“agrado” aos interesses econômicos que alimentam as campanhas
políticas”, arremata a manifestação do MPF.
Processo
nº 3883-98.2012.4.01.3902
Ministério Público Federal no Pará
Assessoria de Comunicação
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