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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Não o chamem de Jabuti Amarrado!



      Por Samuel Lima (*)

Queria saber da ciência médica a resposta que se passa no subterrâneo da mente de certos personagens que, pelos seus comportamentos, marcam a história de uma rua, de um bairro ou de uma cidade.

Há anos passados, na minha saudosa e querida cidade de Portel, pelos idos do final da década de 70, meu pai possuía um pequeno estabelecimento comercial - uma baiúca no famoso “Remanso”. Um lugar na área portuária dessa cidade, por sinal, muito movimentado e palco propício para uma das mais antigas ações da humanidade, a demanda por meretrício. Freqüentavam ali maridos infiéis, funcionários públicos, operários, marinheiros – quase todos fissurados em jogos de azar, bebidas alcoólicas, músicas bregas e a busca incessante de aliviar a testosterona nalgumas profissionais do sexo, que ali existiam. Por lá, como diz a linguagem regional, vinha gente de toda paragem.   A caboclada do interior, os gringos dos navios da Georgia Pacífic, os barqueiros de Abaeté e Igarapé-Miri e os crioulos dos fétidos barcos boieiros do Rio Cururu.

Também nesse fuxico todo, freqüentava nas mediações do antigo Mercado Central e do Trapiche Municipal, um desses personagens. Atendia pelo nome de Manuel, ou Manel para os íntimos. Era deficiente mental e tinha o apelido “Jabuti Amarrado”. Conheci bem pouco a sua parentela. Era um filósofo popular capaz de sair com tiradas como esta: “Sou um homem trabalhador e tô a procura de um grande amor, sei que um dia eu acharei, pra terminar a minha dor!”

Saía do sério quando alguém lhe chamava de “Jabuti Amarrado” ou “Jabuti Encarcado”. A molecada ficava escondida e gritava: “Fala Jabuti!; “Jabuti Amarrado!”- “É a tua mãe”, aquela apertada velha!” respondia. E ia embora, possesso.

Quando ele cismava que alguém o apelidava estando por perto, saía numa carreira louca atrás do ofensor. O “Jabuti” era vítima de crises periódicas dos sintomas da doença que sofria. Quando ficava emocionalmente abalado, as crises eram mais constantes. Por outro lado, se não o chamassem de “Jabuti Amarrado” era um sujeito pacífico, prestativo e muito trabalhador. Lembro que muita gente o fazia de lambaio e burro de carga, aproveitando-se da deficiência mental e humildade do pobre homem. Diziam: “Manel, vai comprar uma botija de gás pra mim que, quando tu voltar te dou a minha filha em casamento”. “Vou agora mesmo, minha sogra, deixe comigo.” E inocentemente ia feliz com o objeto pesado sobre os ombros.

Manoel era sagico e muito disposto para o trabalho. No entanto, com o passar do tempo, adquiriu um desvio na coluna – devido aos excessos de esforços físicos pesados que executava. Havia pessoas mal intencionadas que, se valiam de seus serviços e no final, lhe davam cachaça como forma de pagamento. 

Por outro lado, havia pessoas de bem que o recompensavam. No final da tardinha, quando não vinha de porre, passava na rua que morávamos, portando sacos de mercadoria. Quase todas às vezes, parava no pátio de nossa casa e pedia água pra beber. A mamãe ficava muito penalizada e perguntava: “Tu já comeu alguma coisa hoje, Manoel?” “Ainda não comi nada, não, senhora!, respondia. A mamãe fazia um prato repleto de comida e dava a ele. Certa vez, esse Manoel estava tão faminto que ao pegar a comida de maneira afoita, caiu no chão o conteúdo. O pessoal de casa gritou: “Égua Manoel, condenou”! “Que nada, vai pro bucho não tem luxo”, respondeu. Depois encheu o prato de farinha e esmagou com os dedos duas pimentas malaguetas e comeu. Após a refeição tomava sempre um litro de água.

Após aliviar o estômago, ficávamos sentados no umbral do pátio de casa e escutávamos o Manoel contar como foi o movimento do Remanso naquele dia. Contava detalhadamente e repetia as histórias intermináveis de lá, algumas engraçadas, outras impróprias de baixo calão. Ríamos muito e ouvíamos com atenção, mas sem nunca dizer, “e aí Jabuti contra outra”.

Perguntávamos quem era os comerciantes que eram gentis com ele. Respondia com os olhos radiantes quem o tratava bem e, dava aqueles sacos cheios de mercadorias era os senhores João Costa, o Dió (Dionísio), o Carico, Dona Noca do Luzo etc. Mas também dizia que, havia outros que eram maus com ele, pois, só pagavam com cachaça e o incitavam travar lutas com o Pomboca.

Certa vez, fiquei muito comovido de um ato desumano que lhe fizeram. Esse Manoel possuía uma enorme ferida transversal do dorso do pé direito, tipo uma leishmaniose crônica que, há muitos anos não sarava. Havia pessoas solidárias que queriam vê-lo curado. Outros se divertiam com o seu infortúnio. Em determinada ocasião, quando esse Manoel jazia bêbado jogado em uma calçada, uns indivíduos perversos, pegaram certa quantidade de breu e esquentaram ao fogo até dissolver em forma de pasta e depois jogaram o conteúdo fervendo sobre a ferida. O Manoel quase morre de tanta dor.

Tempos depois, quando eu não mais residia em Portel, soube do sinistro e lamentável episódio que pôs fim ao sofrimento dessa pobre alma.

Este é um fato triste da minha vida real, que fica guardado no fundo da minha memória, e uma vez ou outra aflora em minha mente.

Contudo, quero aqui render a minha homenagem e minha admiração ao Manoel que, mesmo com a sua vida simples e marcada pelas atrocidades da vida, serviu de inspiração para que este artigo sensibilize aqueles que apreciam fazer gestos cruéis com os seus semelhantes.

 Finalmente essa crônica, bem que poderia estar no alto epigrafado: “O infortúnio de um pobre homem”; “Como vive um oprimido” e ou, “A Tristeza do Jabuti, digo, do Manoel”.

(*) portelense, economista, pesquisador e atual Secretário Municipal de Planejamento em Mazagão-AP
Samlima17@yahoo.com.br   

















                   

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