Por Samuel Lima (*)
Queria saber
da ciência médica a resposta que se passa no subterrâneo da mente de certos
personagens que, pelos seus comportamentos, marcam a história de uma rua, de um
bairro ou de uma cidade.
Há anos
passados, na minha saudosa e querida cidade de Portel, pelos idos do final da
década de 70, meu pai possuía um pequeno estabelecimento comercial - uma baiúca
no famoso “Remanso”. Um lugar na área portuária dessa cidade, por sinal, muito
movimentado e palco propício para uma das mais antigas ações da humanidade, a
demanda por meretrício. Freqüentavam ali maridos infiéis, funcionários
públicos, operários, marinheiros – quase todos fissurados em jogos de azar,
bebidas alcoólicas, músicas bregas e a busca incessante de aliviar a
testosterona nalgumas profissionais do sexo, que ali existiam. Por lá, como diz
a linguagem regional, vinha gente de toda paragem. A caboclada do interior, os gringos dos
navios da Georgia Pacífic, os barqueiros de Abaeté e Igarapé-Miri e os
crioulos dos fétidos barcos boieiros do Rio Cururu.
Também nesse
fuxico todo, freqüentava nas mediações do antigo Mercado Central e do Trapiche
Municipal, um desses personagens. Atendia pelo nome de Manuel, ou Manel para os
íntimos. Era deficiente mental e tinha o apelido “Jabuti Amarrado”. Conheci bem
pouco a sua parentela. Era um filósofo popular capaz de sair com tiradas como
esta: “Sou um homem trabalhador e tô a procura de um grande amor, sei que um
dia eu acharei, pra terminar a minha dor!”
Saía do
sério quando alguém lhe chamava de “Jabuti Amarrado” ou “Jabuti Encarcado”. A
molecada ficava escondida e gritava: “Fala Jabuti!; “Jabuti Amarrado!”- “É a
tua mãe”, aquela apertada velha!” respondia. E ia embora, possesso.
Quando ele
cismava que alguém o apelidava estando por perto, saía numa carreira louca
atrás do ofensor. O “Jabuti” era vítima de crises periódicas dos sintomas da
doença que sofria. Quando ficava emocionalmente abalado, as crises eram mais
constantes. Por outro lado, se não o chamassem de “Jabuti Amarrado” era um
sujeito pacífico, prestativo e muito trabalhador. Lembro que muita gente o
fazia de lambaio e burro de carga, aproveitando-se da deficiência mental e
humildade do pobre homem. Diziam: “Manel, vai comprar uma botija de gás pra mim
que, quando tu voltar te dou a minha filha em casamento”. “Vou agora mesmo,
minha sogra, deixe comigo.” E inocentemente ia feliz com o objeto pesado sobre
os ombros.
Manoel era
sagico e muito disposto para o trabalho. No entanto, com o passar do tempo,
adquiriu um desvio na coluna – devido aos excessos de esforços físicos pesados
que executava. Havia pessoas mal intencionadas que, se valiam de seus serviços
e no final, lhe davam cachaça como forma de pagamento.
Por outro
lado, havia pessoas de bem que o recompensavam. No final da tardinha, quando
não vinha de porre, passava na rua que morávamos, portando sacos de mercadoria.
Quase todas às vezes, parava no pátio de nossa casa e pedia água pra beber. A
mamãe ficava muito penalizada e perguntava: “Tu já comeu alguma coisa hoje,
Manoel?”
“Ainda não comi nada, não, senhora!, respondia. A mamãe fazia um prato repleto
de comida e dava a ele. Certa vez, esse Manoel estava tão faminto que ao pegar
a comida de maneira afoita, caiu no chão o conteúdo. O pessoal de casa gritou:
“Égua Manoel, condenou”! “Que nada, vai pro bucho não tem luxo”, respondeu.
Depois encheu o prato de farinha e esmagou com os dedos duas pimentas
malaguetas e comeu. Após a refeição tomava sempre um litro de água.
Após aliviar
o estômago, ficávamos sentados no umbral do pátio de casa e escutávamos o
Manoel contar como foi o movimento do Remanso naquele dia. Contava
detalhadamente e repetia as histórias intermináveis de lá, algumas engraçadas,
outras impróprias de baixo calão. Ríamos muito e ouvíamos com atenção, mas sem
nunca dizer, “e aí Jabuti contra outra”.
Perguntávamos
quem era os comerciantes que eram gentis com ele. Respondia com os olhos
radiantes quem o tratava bem e, dava aqueles sacos cheios de mercadorias era os
senhores João Costa, o Dió (Dionísio), o Carico, Dona Noca do Luzo etc. Mas
também dizia que, havia outros que eram maus com ele, pois, só pagavam com
cachaça e o incitavam travar lutas com o Pomboca.
Certa vez,
fiquei muito comovido de um ato desumano que lhe fizeram. Esse Manoel possuía
uma enorme ferida transversal do dorso do pé direito, tipo uma leishmaniose
crônica que, há muitos anos não sarava. Havia pessoas solidárias que queriam
vê-lo curado. Outros se divertiam com o seu infortúnio. Em determinada ocasião,
quando esse Manoel jazia bêbado jogado em uma calçada, uns indivíduos perversos,
pegaram certa quantidade de breu e esquentaram ao fogo até dissolver em forma
de pasta e depois jogaram o conteúdo fervendo sobre a ferida. O Manoel quase
morre de tanta dor.
Tempos
depois, quando eu não mais residia em Portel, soube do sinistro e lamentável
episódio que pôs fim ao sofrimento dessa pobre alma.
Este é um
fato triste da minha vida real, que fica guardado no fundo da minha memória, e
uma vez ou outra aflora em minha mente.
Contudo,
quero aqui render a minha homenagem e minha admiração ao Manoel que, mesmo com
a sua vida simples e marcada pelas atrocidades da vida, serviu de inspiração
para que este artigo sensibilize aqueles que apreciam fazer gestos cruéis com
os seus semelhantes.
Finalmente essa crônica, bem que poderia estar
no alto epigrafado: “O infortúnio de um pobre homem”; “Como vive um oprimido” e
ou, “A Tristeza do Jabuti, digo, do Manoel”.
(*) portelense, economista, pesquisador e atual
Secretário Municipal de Planejamento em Mazagão-AP
Samlima17@yahoo.com.br
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